Quando convidada a escrever este artigo, perguntei às minhas filhas de 16 e 14 anos que informações as ajudariam na escolha pela carreira de direito.
Tendo ambos os pais advogados bastante atuantes, presumi que gostariam de entender o que faz um advogado na prática, os meandros do dia a dia e a remuneração.
No entanto, responderam que gostariam de saber qual era a sensação de ajudar um cliente, que satisfação não monetária e genuína se tem no exercício da profissão.
Tentarei aqui responder à indagação que me fizeram, até por confiar que as pessoas da geração delas estão muito mais engajadas com as causas humanas, e de forma leve e espontânea, sem doutrinação.
Para mim, a satisfação genuína está na defesa dos direitos de consumidores de planos de saúde que tiveram coberturas abusivamente negadas, em momento de extrema fragilidade física e psíquica.
Assim penso porque o direito à saúde, alçado à categoria de direito fundamental, representa elemento basilar da existência digna, que acredito deve ser perseguido e efetivado como veículo de comprometimento e mudança social.
E em que aspecto o advogado que atua na defesa dos direitos dos consumidores de planos de saúde pode fazer diferença? Para mim, na escuta empática do cliente, observando sua situação e reconhecendo suas aflições. Explico.
Em casos envolvendo direito à saúde, a relação entre advogado e cliente precisa ter o aditivo da escuta atenta e acolhedora. Isso porque ou o cliente está em situação de fragilidade emocional e física ou tem algum familiar nesta condição. O bem que se pretende tutelar é antes de tudo a vida ou a possibilidade dela, daí que, tal como na medicina, as relações entre advogado e cliente, sobretudo nesta área, devem ser mais humanizadas.
Mas o que importa mesmo é a escuta responsável.
Como muito se expõe, vivemos hoje a judicialização da saúde, com expressivo aumento das demandas judiciais visando obtenção de medicamento ou tratamento negado pelo SUS ou por operadoras de planos de saúde. Em reportagem veiculada em 6.10.2017 no Jornal SPTV da Rede Globo, noticiou-se aumento de 348% das ações contra planos de saúde entre 2011 e 2017, majoritariamente baseadas em abusos no tratamento a idosos e em negativa de cobertura de cirurgias e tratamentos contra o câncer.
O aumento expressivo das demandas relacionadas à saúde tem como verdade subjacente abusos de parte a parte. Majoritariamente das operadoras, é claro, que passaram a negar procedimentos sem qualquer critério como estratégia para ganhar tempo e dinheiro até que o consumidor ajuizasse a ação, se ajuizasse. E, em menor escala, de consumidores, muitas vezes influenciados por médicos e advogados, buscando cobertura para medicamentos e procedimentos sequer de fato necessários e até mesmo supérfluos se comparados a outras prestações essenciais da saúde.
Se antes havia benevolência do judiciário com demandas desta natureza, hoje a situação toma outra direção. O STJ, Corte que orienta a interpretação das leis federais, vem adotando posição mais política e econômica em prol das operadoras.
Basta citar o exemplo do fornecimento de medicamentos. Inicialmente, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) era o de que, se havia cobertura contratual para a doença, o plano era obrigado a custear o medicamento prescrito pelo médico mesmo que importado e não registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (a respeito, emblemático acórdão proferido em 7.2.2017 pela Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial 1.641.135).
Contudo, o tema foi objeto da sistemática dos recursos especiais repetitivos, com afetação do Recurso Especial 1.712.163/SP, de relatoria do Ministro Moura Ribeiro, cujo julgamento, proferido em 8.11.2018, alterou diametralmente o entendimento anterior ao consignar a seguinte orientação:
“RECURSO ESPECIAL. RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. PLANO DE SAÚDE. CONTROVÉRSIA ACERCA DA OBRIGATORIEDADE DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO REGISTRADO PELA ANVISA. 1. Para efeitos do art. 1.040 do NCPC: 1.1. As operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA. 2. Aplicação ao caso concreto: 2.1. Não há ofensa ao art. 535 do CPC/73 quando o Tribunal de origem enfrenta todas as questões postas, não havendo no acórdão recorrido omissão, contradição ou obscuridade. 2.2. É legítima a recusa da operadora de plano de saúde em custear medicamento importado, não nacionalizado, sem o devido registro pela ANVISA, em atenção ao disposto no art. 10, V, da Lei nº 9.656/98, sob pena de afronta aos arts. 66 da Lei nº 6.360/76 e 10, V, da Lei nº 6.437/76. Incidência da Recomendação nº 31/2010 do CNJ e dos Enunciados nº 6 e 26, ambos da I Jornada de Direito da Saúde, respectivamente. A determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei; É lícita a exclusão de cobertura de produto, tecnologia e medicamento importado não nacionalizado, bem como tratamento clínico ou cirúrgico experimental. 2.3. Porém, após o registro pela ANVISA, a operadora de plano de saúde não pode recusar o custeio do tratamento com o fármaco indicado pelo médico responsável pelo beneficiário.”
Da mesma forma, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 22.5.2019, que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamento experimental ou sem registro na Anvisa, salvo em casos excepcionais. A decisão foi tomada por maioria de votos no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 657718, com repercussão geral reconhecida, de relatoria do ministro Marco Aurélio.
Essa mudança de paradigma leva à conclusão de que os interesses das operadoras têm sido atendidos para preservação do mercado. Neste contexto, a participação do advogado é bastante relevante para, a partir da escuta responsável de seu cliente, buscar que demandas legítimas sejam levadas ao Judiciário. E por demanda legítima entendo aquela que se origina de conduta abusiva, ilegal e desrespeitosa da operadora, a ser aferida de modo casuístico.
Deve-se entender a aflição e angústia do cliente, mas é preciso avaliar se do ponto de vista jurídico a causa é viável, sob pena de se majorar angústia e sofrimento.
Outro aspecto importante a se considerar é que a obrigação do advogado é de meio e não de resultado, o que significa envidar todos os esforços na tentativa de se chegar ao resultado, que pode não acontecer. E este talvez seja o maior desafio pessoal do advogado: aceitar o fracasso da demanda que significa em última analise deixar de atender a expectativa de um cliente em situação de fragilidade emocional e física.
Termino este artigo lembrando mensagem encaminhada pelo Presidente John F. Kennedy ao Congresso dos Estados Unidos em 15 de março de 1962, que se tornou um marco na defesa dos direito dos consumidores. Kennedy cunhou a frase “Consumidores, por definição, somos todos nós”, apontando nos assistir quatro direitos fundamentais: o direito à segurança, o direito à informação, o direito à escolha e o direito à escuta.
Se somos todos consumidores, temos, como representantes da sociedade, o dever de luta pela preservação e implementação dos nossos direitos. É nesta linha que busco pautar minha atuação como advogada na defesa dos direitos de consumidores de planos de saúde.