Reflexões sobre as importantes decisões judiciais relacionadas ao direito da saúde
Sim, este é mais um artigo tratando da pandemia de COVID-19, responsável por mudanças abruptas na rotina da esmagadora maioria das pessoas e empresas e palco de muitas reflexões.
Neste cenário de incertezas, achamos interessante abordar parte da efervescência judicial, legislativa e da ANS visando trazer alguma definição nas relações de consumo do setor de saúde.
O presente artigo analisa algumas das mais importantes decisões judiciais proferidas já sob a determinação de isolamento social relacionadas a direito da saúde, assim como a mobilização legislativa na área de saúde para enfrentamento da crise.
A saúde foi alçada a direito social fundamental pela Constituição Federal de 1988, preconizada dever do Estado a ser cumprido por meio de políticas públicas que permitam o acesso a serviços e práticas visando a proteção, manutenção e recuperação da saúde. A Constituição Federal criou ainda o Sistema Único de Saúde como estrutura organizacional cujo escopo é a prestação de serviços de saúde pública de forma universal (artigos 6º, 196 a 198 da CF/88).
A Carta Constitucional previu, ainda, que não se tratava de serviço público exclusivo, permitindo a atuação da iniciativa privada nesta área, motivo pelo qual exatamente 10 anos depois, em 3 de junho de 1998, foi promulgada a Lei nº 9.656, conhecida como a Lei dos Planos de Saúde, regulamentando as atividades das operadoras de planos e seguros de assistência à saúde privado e definindo garantias mínimas na prestação do serviço de saúde suplementar, tais como coberturas obrigatórias, fixação de prazos de carência, entre outras diretrizes não menos importantes.
Tratando dos prazos de carência vieram muitas decisões determinando seu afastamento para tratamento da COVID-19.
Em 7.4.2020, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por seu Núcleo Especializado de Defesa do Consumidor - NUD ECON, ajuizou ação civil pública com pedido liminar contra as operadoras AMIL, Bradesco Saúde, Notre Dame, Prevent Senior, Central Unimed e a SulAmérica Saúde, objetivando o pleno atendimento dos beneficiários dos respectivos planos em caso de diagnóstico de COVID-19 mesmo que não cumprido o prazo contratual de carência, sem qualquer limitação quanto a internação hospitalar, por se tratar de situação de emergência.
Em 16.4.20, a tutela de urgência foi deferida pelo juiz Fabio de Souza Pimenta, da 32ª Vara Cível do Fórum Central de São Paulo, para determinar a “liberação imediata de cobertura para o atendimento e tratamento prescrito por médico, em favor de todos os seus segurados que sejam suspeitos ou efetivos portadores do vírus Covid-19, independentemente do cumprimento do prazo de carência de 180 dias.”
A decisão sustentou que “o momento presente é de total excepcionalidade e permite, juridicamente, a interpretação de que é abusiva a negativa de cobertura por plano de saúde a pacientes suspeitos ou efetivamente portadores do vírus Covid-19 em razão de carência contratual, pois todos esses casos, sem distinção, devem ser considerados urgentes, não só para tratamento de cada paciente individualmente atendido, buscando-se evitar o agravamento de seus quadros clínicos (eis que não há certeza, mesmo para não integrantes de grupos chamados “de risco”), mas também para que assim haja maior facilidade de contenção da propagação da doença, possibilitando identificação e isolamento de eventuais contagiadores em potencial, fazendo com que os contratos de plano de saúde cumpram não só a sua finalidade em relação aos seus segurados, mas também a sua finalidade social de ferramenta do sistema de saúde em geral.”
Neste mesmo sentido, destaca-se a decisão da Juíza Paula Navarro, que atuou no plantão cível de primeira instância da Capital do Estado de São Paulo, e determinou à operadora que custeasse internação em UTI a paciente com suspeita de COVID-19 por se tratar de caso de emergência ao qual não se impõe o prazo de carência contratual de 180 dias.
Analisando o agravo de instrumento interposto contra aquela decisão, a Desembargadora Fernanda Camacho, do TJSP, proferiu decisão mantendo a liminar por considerar abusiva a recusa com base em carência contratual. Para tanto citou, entre outros argumentos de relevo, a Súmula 103 do Tribunal de Justiça de São Paulo: “é abusiva a negativa de cobertura em atendimento de urgência e/ou emergência a pretexto de que está em curso período de carência que não seja o prazo de 24 horas estabelecido na Lei n. 9.656/98”.
Observa-se nessas decisões importante atuação transcendente aos interesses dos sujeitos da lide. O afastamento dos prazos de carência, além de precedente para demais usuários de planos de saúde, protege a sociedade por permitir tratamento adequado a paciente infectado, proporcionando controle no risco de propagação da doença.
De outro lado, o Poder Legislativo também demonstra intensa mobilização para a área da saúde suplementar, que alcança mais de 47 milhões de beneficiários.
De outro lado, o Poder Legislativo também demonstra intensa mobilização para a área da saúde suplementar, que alcança mais de 47 milhões de beneficiários.
Na Câmara há o PL 2012/2020[1], apensado ao PL 1443/2020[2], por sua vez apensado ao PL 1117/2020[3], propondo alteração na Lei dos Planos de Saúde para estabelecer a vedação de reajuste das mensalidades enquanto durarem os efeitos do Estado de Calamidade Pública, declarado pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020 decorrente da Pandemia do Coronavírus (Covid-19), e para determinar a vedação temporária da suspensão ou rescisão unilateral dos contratos dos planos pelo prazo de 90 dias. Nesta mesma linha é o PL 1892/2020[4].
O PL 1907/2020[5] propõe assegurar aos consumidores o atendimento pelos planos e seguros de saúde durante a vigência do estado de calamidade pública.
Perante o Senado tramita o PL 1991/2020[6] sugerindo alterações na Lei dos Planos de Saúde para dispor sobre a assistência aos beneficiários de planos privados de saúde nas emergências em saúde pública de importância nacional ou internacional.
Também o PL 2.101/2020[7] estabelece que, em caráter excepcional até 2021, os índices máximos de reajuste dos planos de saúde coletivos serão limitados aos que forem definidos pela Agência Nacional de Saúde (ANS) e, em 2022, os reajustes obedecerão a regras de transição a serem estabelecidas.
Já o PL 1.994/2020[8] propõe reduzir pela metade o valor da mensalidade dos planos de saúde de qualquer natureza enquanto durar o estado de emergência decorrente da pandemia da Covid-19.
`O PL 2.112/2020[9] proíbe o reajuste de quaisquer planos de saúde durante a emergência da Covid-19, abrindo a possibilidade de estender a vedação de reajustes pelo tempo necessário para o enfrentamento da crise de saúde.
Como visto, há inegável preocupação legislativa em assegurar o tratamento da COVID-19 e afastar possíveis evocações de cláusulas excludentes de responsabilidade pelos planos de saúde o que, como já referido, transcende o interesse individual dos consumidores contratantes, na medida em que tem por consequência beneficiar a coletividade pela redução da possibilidade de contágio em escala geométrica.
Em outra seara, com o intuito de viabilizar o equilíbrio do setor, a ANS propôs às operadoras de planos de saúde a adesão a Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pelo qual as empresas poderiam movimentar recursos provisionados e retenções obrigatórias (o que lhes gera maior liquidez), mediante a assunção das obrigações de (i) pagar em dia os profissionais e estabelecimentos de saúde de sua rede credenciada; (ii) renegociar contratos com beneficiários que estivessem com dificuldades para manter o pagamento do plano; e (iii) a manter os beneficiários no plano até 30 de junho de 2020.
A adesão foi surpreendentemente fraca. Apenas 9 operadoras assinaram o TAC, conforme informado no site da ANS[10]. A notícia veiculada no site InvestNews é a de que “menos de 1% das operadoras aceitaram proteger inadimplentes.”[11] Notícia alarmante, sem dúvidas.
Para ultrapassar a fase desafiadora que enfrentamos, necessários esforços conjuntos. Há o objetivo comum de conter a crise sanitária e econômica, buscando alternativas que minimizem os impactos já existentes no setor da saúde.
As respostas do Judiciário e as propostas legislativas acima mencionadas são altamente relevantes. Esperamos que os PLs sejam rapidamente aprovados, ainda que com ajustes necessários com vistas a manutenção do equilíbrio financeiro do contrato, mas tendo em conta a vulnerabilidade maior do consumidor prejudicado em suas atividades laborais.
E, mais que tudo, urge a adoção de práticas de negociação, ao que não somos habituados. Temos a falsa impressão de que é mais fácil e útil o recurso ao Judiciário para que o Estado Pai restabeleça a ordem que seus filhos cidadãos não conseguiram manter. O caminho da negociação revela maturidade de todos nós, os atores da sociedade.
[6] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141611 consultado em 4.5.2020
[7] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141670 consultado em 9.5.2020
[8] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141612 consultado em 9.5.2020
[9] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141675 consultado em 9.5.2020