Antes de adentrar à questão propriamente dita, necessário esclarecer alguns conceitos importantes: (i) o que é regime de bens e quais suas espécies; e (ii) quem são os herdeiros necessários.
REGIME DE BENS
O regime de bens corresponde a um conjunto de regras que regulamentam a gestão de bens durante a união daqueles que pretendem formar uma vida em comum. Aqui fala-se em “união familiar”, uma vez que tais uniões, sejam aquelas fruto do casamento ou não, passaram a ter o “mesmo estado e proteções jurídicas” 1 com as mudanças de hábitos e costumes da sociedade brasileira.
Como bem pontuado por Rolf Madaleno: “o matrimônio e bem assim a união estável determinam a existência de diversos efeitos patrimoniais, tanto em relação aos cônjuges e conviventes como deles para com terceiros”.
A escolha do regime de bens não tem apenas o objetivo de regulamentar a gestão dos bens durante a união familiar, mas também após sua dissolução, seja pela separação de fato ou divórcio, seja pela morte de um dos cônjuges.
Dessa forma, tendo em vista que o casamento e a união estável pressupõem a comunhão plena de vida, tanto em relação aos laços afetivos quanto às questões patrimoniais, necessário que as partes escolham o melhor regime para definir como será a administração dos bens do casal durante a união e a partilha após a dissolução da união.
A legislação brasileira estabelece cinco modalidades de regimes de bens: (i) comunhão universal; (ii) comunhão parcial; (iii) separação total convencional (voluntária); (iv) separação obrigatória; e (v) participação final nos aquestos.
Até 1977, a comunhão universal de bens era o regime legal adotado no Brasil, o que significa que se o casal nada dispusesse a respeito, este seria automaticamente aplicado. Nele, forma-se um patrimônio único do casal, aí incluídos todos os bens adquiridos individualmente por cada parte antes e após a união, inclusive por herança.
Após 1977, ano do advento da Lei do Divórcio, importante marco regulatório nas questões de família, o regime legal passou a ser o da comunhão parcial de bens. Nesse regime, todos os bens adquiridos após a data da união familiar serão comuns ao casal, enquanto que os bens adquiridos antes da união permanecem como bens particulares de cada uma das partes.
Caso o casal não queira adotar o regime legal, deve-se elaborar um contrato formal definindo o regime de bens escolhido, por escritura pública no Cartório de Notas, denominado pacto antenupcial, que posteriormente será levado ao Cartório de Registro Civil onde será formalizado o casamento ou união estável.
Há inclusive a possibilidade de serem adotadas disposições de mais de um regime, que são os chamados regimes híbridos ou mistos.
Por outro lado, no regime da separação total de bens não há qualquer comunhão de bens entre o casal, todo o patrimônio adquirido antes ou após a formalização da união pertencerá exclusivamente a cada uma das partes individualmente.
O regime da separação obrigatória de bens é idêntico ao da separação total, com exceção de que este último é uma opção das partes, por isso também chamado de regime da separação convencional ou voluntária, enquanto o regime da separação obrigatória é assim denominado porque imposto pela legislação brasileira em situações específicas, como quando uma das partes tem mais que 70 (setenta) anos de idade.
Por fim, há o regime da participação final dos aquestos, praticamente em desuso no Brasil em razão de sua complexidade, razão pela qual não será explorado neste trabalho.
HERDEIROS NECESSÁRIOS
Superada a explicação a respeito dos regimes de bens, passa-se à definição de herdeiros necessários, que, segundo o Código Civil Brasileiro, são os descendentes (filhos, netos, bisnetos), ascendentes (pais, avós, bisavós) e o cônjuge, com direito, guardada a ordem de vocação hereditária que será em seguida explicada, à metade dos bens da herança, denominada legítima. A outra metade dos bens é chamada de herança testamentária e pode ser disposta livremente por meio de testamento.
Havendo herdeiros necessários, o Código Civil Brasileiro estabelece como será a ordem da sucessão legítima, nos termos do artigo 1.829, abaixo transcrito:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais.”
Assim, quando uma pessoa falece, metade de seus bens deverá ir, primeiro, para os descendentes e o cônjuge sobrevivente, em igualdades de condições, ressalvados os casos expressamente referidos: se casados (i) no regime da comunhão universal – porque nessa hipótese o cônjuge sobrevivente já detém metade do patrimônio (meeiro, e não herdeiro); (ii) no regime da separação obrigatória de bens, uma vez que nesse caso, em tese, os bens não se comunicam; e (iii) no regime da comunhão parcial de bens quando o autor da herança não deixou bens particulares – nessa hipótese, só terão bens comuns a serem partilhados, sendo o cônjuge meeiro e não herdeiro.
E se o cônjuge sobrevivente for casado sob o regime da separação convencional bens? Seria ele herdeiro necessário, concorrendo em igualdade de condições com os descendentes?
Como a legislação brasileira é lacunosa a este respeito, deve-se recorrer à jurisprudência, isto é, ao conjunto de decisões e interpretações dos Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal - STF e Superior Tribunal de Justiça – STJ), responsáveis pela uniformização da aplicação da legislação em território nacional.
Antes de analisarmos a jurisprudência sobre o tema propriamente dito, cabe mencionar dois entendimentos recentes e pertinentes:
STF, 2017: “No sistema constitucional vigente é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1829 do Código Civil.”
STJ, 2018: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição.”
Pela leitura das duas teses acima, conclui-se que não há qualquer diferenciação entre cônjuges e companheiros para fins sucessórios, daí porque a palavra “cônjuge” no artigo supracitado pode ser perfeitamente substituída por companheiro, bem como que a ressalva quanto ao regime da separação obrigatória de bens não é uma regra absoluta, podendo ser relativizada a depender do caso concreto.
E qual o entendimento da jurisprudência quanto ao cônjuge/companheiro sobrevivente casado sob o regime da separação convencional de bens?
Em 2009, a posição adotada pelo STJ era a de que a exceção do inciso I do artigo 1829 do Código Civil se aplicava tanto à separação obrigatória, quanto à separação convencional, não participando o cônjuge da sucessão como herdeiro necessário, em concorrência com os descendentes do falecido.
À época, a Terceira Turma do STJ acolheu a pretensão de três herdeiros para negar o pedido de habilitação no inventário, como herdeira necessária, da viúva do pai e madrasta dos filhos do falecido, com quem foi casada por 10 meses sob o regime da separação voluntária de bens, celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública com aquele que já detinha patrimônio e padecia de doença incapacitante.
Em sua decisão, a relatora Ministra Nancy Andrighi ressaltou a importância de ser respeitada a autonomia das partes tanto em vida, como após a morte, sendo que entendimento em sentido inverso provocaria a morte do regime da separação convencional de bens. Confira-se trecho da decisão mencionada:
“O regime de separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância. - Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário.”
Anos depois, em 2014, a mesma Terceira Turma do STJ modificou posicionamento que até então prevalecia, ao consolidar o entendimento de que a regime da separação convencional não se confunde com o regime da separação obrigatória de bens, de forma que o cônjuge sobrevivente casado sob o regime da separação convencional de bens concorre na sucessão legítima com os descendentes do falecido em todo o seu patrimônio.
O precedente surgiu quando a Terceira Turma do STJ negou provimento ao recurso da única filha do falecido para que a viúva de seu pai não tivesse direito à herança, mantendo a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de lhe garantir o mínimo para sua sobrevivência.
Em sua decisão, o relator Ministro Ricardo Villas Boas Cueva defendeu que o pacto antenupcial não produz efeitos após a morte, assim como que os regimes da separação obrigatória e voluntária não se confundem, razão pela qual não podem ter tratamento homogêneo. Observe-se trecho da decisão:
“O art. 1.829, I, do Código Civil de 2002 confere ao cônjuge casado sob a égide do regime de separação convencional a condição de herdeiro necessário, que concorre com os descendentes do falecido independentemente do período de duração do casamento, com vistas a garantir-lhe o mínimo necessário para uma sobrevivência digna. (...)
O regime da separação convencional de bens escolhido livremente pelos nubentes à luz do princípio da autonomia de vontade (por meio do pacto antenupcial), não se confunde com o regime da separação legal ou obrigatória de bens, que é imposto de forma cogente pela legislação (art. 1.641 do Código Civil), e no qual efetivamente não há concorrência do cônjuge com o descendente.”
Pouco tempo depois, em 2015, a Terceira Turma do STJ, por maioria dos votos, adotou tese ainda mais abrangente, aplicada até o presente, de que “o cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário, alertando, outrossim, que o Código Civil veda sua concorrência com descendentes, entre outras hipóteses, nos casos de casamento contraído sob o regime de separação legal de bens, permitindo, ao revés, a concorrência nos casos de separação convencional de bens”.
A propósito, confira-se ementa do precedente que uniformizou a jurisprudência:
“CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE. HERDEIRO NECESSÁRIO. ART. 1.845 DO CC. REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. CONCORRÊNCIA COM DESCENDENTE. POSSIBILIDADE. ART. 1.829, I, DO CC. 1. O cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário (art. 1.845 do Código Civil). 2. No regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil. Interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil. 3. Recurso especial desprovido.”
Assim, não há dúvidas de que o cônjuge ou companheiro sobrevivente casado sob o regime da separação convencional de bens é sim herdeiro necessário, concorrendo com descendentes ou ascendentes do falecido a depender do caso concreto.
Esse é o entendimento atual consolidado nos Tribunais Superiores. Todavia, conforme demonstrado nesse trabalho, a jurisprudência sofre constante mudança, sobretudo no que diz respeito às questões envolvendo Direito de Família, cujas ações refletem as transformações de hábitos e costumes da sociedade brasileira.
O recente Código de Processo Civil brasileiro, de 2015, inclusive inovou ao dispor sobre a necessidade de se observar o sistema de precedentes, daí porque é extremamente importante que não só a população esteja atenta aos entendimentos dos Tribunais Superiores, como também que as decisões proferidas sejam sensatas e precisas, diante do grande impacto causado.
1 CALMON, Rafael. Partilha de bens na separação, no divórcio e na dissolução da união estável: aspectos materiais e processuais.
2ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 31.
STF, acesso em 30.05.2019: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=342982
STJ. 2ª Seção. EREsp 1.623.858-MG, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), julgado em 23/05/2018.
STJ - REsp: 992749 MS 2007/0229597-9, Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI, j. em 01/12/2009, Segunda Seção, Terceira Turma.
STJ - REsp: 1472945 RJ 2013/0335003-3 Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, j. em 23/10/2014, Segunda Seção, Terceira Turma.
REsp 1382170/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Segunda Seção, Terceira Turma, j. em 22/04/2015.