Danos existenciais e biológicos: novas formas de danos ou repaginação dos danos morais e materiais?

13/07/2021

Os danos infligidos por alguém a outrem compõem matéria amplamente discutida no meio jurídico tendo em vista sua farta ocorrência na vida cotidiana. Qualquer pessoa em qualquer fase da sua vida poderá vir a sofrer algum tipo de dano, seja ele material, moral ou estético, em decorrência de ação ou omissão de outra pessoa.

O dano material é o de mais fácil conceituação ou percepção, estando diretamente vinculado ao patrimônio ou aos bens materiais da vítima. São os prejuízos causados por uma pessoa ou coisa (sob responsabilidade de uma pessoa) aos bens de outra pessoa. Exemplo fácil é uma batida de carro, causada por um condutor que não respeitou determinada regra de trânsito. O condutor inocente pode pleitear do culpado indenização pelos danos causados ao veículo e também por aquilo que deixou de ganhar com tal fato, talvez pelos dias parados em razão do conserto do veículo se utilizar o veículo como instrumento de seu trabalho.

O dano moral se encontra na classe de dano extrapatrimonial, isto é, não vinculado ao patrimônio e/ou aos bens materiais, mas sim à pessoa como sujeito de direito e detentor de deveres. É o dano afeto à imagem e à moral da pessoa em sua subjetividade, isto é, no processo interno que a constitui como sujeito a partir de experiências. Essa terminologia de dano extrapatrimonial tornou a definição de dano moral mais ampla, aplicando-a a qualquer lesão que se dirija ao direito da personalidade.

Sobre o tema, disserta o doutrinador Silvio Venosa:

“Dano moral ou extrapatrimonial é o prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima. Sua atuação é dentro dos direitos da personalidade. Nesse campo, o prejuízo transita pelo imponderável, daí por que aumentam as dificuldades de se estabelecer a justa recompensa pelo dano.”

O dano estético, por sua vez, é uma vertente do dano moral quando se verifica alguma deformidade física capaz de trazer sofrimento intenso, desgosto, complexo de inferioridade, repugnância, tudo de forma a abalar sua moral e psiquismo.

A respeito do tema, Tereza Ancona Lopez discorre que:

“Atualmente, entende-se que o dano estético representa “qualquer modificação duradoura ou permanente na aparência externa de uma pessoa” (O dano estético. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 38).

Apresentados os temas mais recorrentes na doutrina e jurisprudência, cabe perguntar: você já ouviu falar em danos existenciais e biológicos? Sabe diferenciá-los?

Antes de adentrar no tema que dá título a este artigo, é interessante fazer uma breve análise histórica a respeito do assunto, o que nos levará a assimilar melhor o conceito, bem como perquirir a aplicabilidade dessas modalidades de dano no Direito brasileiro.

Os danos existenciais têm origem na chamada Escola Triestina, na Itália, que passou a reconhecer que casos antes identificados como dano biológico, cuja definição será abordada em tópico próprio abaixo, não se enquadravam de fato nesta categoria. Decisões proferidas pela Corte de Cassação e pela Corte Constitucional Italianas foram responsáveis por consolidar o tema, sendo relevante a decisão que tratou do caso de uma criança que, em razão de erro médico cometido durante o parto, foi destinada a ter uma vida vegetativa.

Em interessante artigo intitulado “O Dano Existencial sob a Perspectiva da Reparação Integral: Destaques doutrinários e jurisprudenciais”, segundo Andrea Cristina e Fernanda Tartuce:

“[...] o dano existencial não trata de danos psicológicos - que se situam no aspecto interno da pessoa - mas da modificação efetiva de sua condição de vida: trata-se de aspecto externo e independente de sua condição psicológica da pessoa por considerar sua relação social.” (apud CARNEVALE, 2010, p.128)

No artigo “A tutela aquiliana de direitos fundamentais no direito comparado: o caso dos danos biológicos, danos existenciais e danos ao projeto de vida”, do desembargador Eugênio Facchini Neto escrito em co-autoria com Graziela Rigo Ferrari, sustenta-se que:

“[...] por dano existencial entende-se qualquer prejuízo que o ilícito (...) provoca sobre atividades não econômicas do sujeito, alterando seus hábitos de vida e sua maneira de viver socialmente, perturbando seriamente sua rotina diária e privando-o da possibilidade de exprimir e realizar sua personalidade no mundo externo. Por outro lado, o dano existencial funda-se sobre a natureza não meramente emotiva e interiorizada (própria do dano moral), mas objetivamente constatável do dano, através da prova de escolhas de vida diversas daquela que seriam feitas, caso não tivesse ocorrido o evento danoso.”

Desta maneira, seguindo com base nas definições apresentadas, o dano existencial difere do dano moral por transcender o sofrimento interno da pessoa. O dano existencial é responsável, sobretudo, por causar prejuízos à vida da pessoa como um todo, privando-a de atividades de lazer, convívio familiar, trabalho, dentre outros.

Para que fique mais claro, cabe considerar uma situação hipotética. Imagine que uma pessoa sofra um acidente de carro em decorrência da manutenção incorreta feita por um mecânico. Em razão da gravidade do acidente a vítima fica em estado vegetativo, deixando de trabalhar e cumprir as funções que antes faziam parte da sua rotina.

À vista do ocorrido, não é possível que se considere apenas o dano moral, pois não houve apenas o sofrimento interno da pessoa, mas sim uma mudança drástica da sua rotina de vida e convívio, enquadrando-a, neste caso, no dano existencial, uma vez que a vítima deixará de exercer todas as funções e atividades que antes exercia.

O cônjuge ou companheiro dessa pessoa poderá de igual forma ingressar com ação por danos existenciais, neste caso, danos indiretos, uma vez que poderá também ter sua rotina drasticamente alterada, seja de trabalho, estudos ou outros compromissos, em função da nova situação que impacta sua esfera de direitos e interesses.

No que diz respeito à reparação civil em razão do dano existencial, Amaro Alves de Almeida Neto, citado por Andrea Zanetti e Fernanda Tartuce no já referido artigo, defende que:

“Ato, doloso ou culposo, que cause uma mudança de perspectiva no cotidiano do ser humano, provocando uma alteração danosa no modo de ser do indivíduo ou nas atividades por ele executadas com vistas ao seu projeto de vida pessoal, prescindindo de qualquer repercussão financeira ou econômica que do fato da lesão possa ocorrer, deve ser indenizado, como dano existencial, um dano à existência do ser humano."

Diante disso, a reparação do dano existencial deve ocorrer de acordo com os critérios do Código Civil, conforme a regra da teoria da responsabilidade civil, inclusive quanto à premissa de que a indenização do dano deve ser medida de acordo com sua extensão.

Danos existenciais nos Tribunais

Nos nossos Tribunais, os danos existenciais ainda não possuem vasto tratamento e aplicação, tendo em vista sua recente conceituação e diferenciação. Em alguns casos, a abordagem do dano sofrido em relação à reparação exigida é feita de maneira errônea, tornando os precedentes encontrados desfavoráveis ao reconhecimento desta modalidade de dano

Note, por exemplo, o caso que discutiu se a jornada excessiva exercida por um investigador de polícia, servidor público estadual, seria passível de caracterização de dano existencial. O Tribunal de Justiça de São Paulo afastou o pedido de indenização por entender que o trabalho exercido pelo servidor público estava tutelado por regime estatutário próprio.

E o dano biológico?

Assim como o existencial, a conceituação e diferenciação do dano biológico têm origem na Itália, sendo, nas palavras do Desembargador gaúcho Eugênio Fachinni Neto:

“[...] a lesão do interesse, constitucionalmente garantido, à integridade psíquica e física da pessoa, medicamente comprovada; (...) Além da distinção entre dano moral subjetivo (caracterizado pela presença da dor e sofrimento internos, sem reflexos externos na vida da pessoa) e dano existencial (caracterizado sempre pelas consequências externas, na vida da vítima, em razão da alteração [...] passou-se a restringir os danos biológicos à presença de uma lesão física ou psíquica ou um comprometimento da saúde, pericialmente identificados.”

Dessa maneira, os danos biológicos, diferentemente dos danos existenciais e morais, caracterizam-se pela existência de uma lesão física ou psíquica, ou ainda um comprometimento da saúde comprovado por perícia, ou seja, por um profissional capacitado e especialista na lesão verificada.

A reparação civil do dano biológico se dá conforme os critérios gerais do Código Civil, devendo sempre atender à extensão do dano.

Conclusão

Após analisados os danos recorrentes na doutrina em paralelo aos danos existenciais e biológicos, é possível concluir que, ainda que a doutrina brasileira dê prevalência aos danos morais, materiais e estéticos, urge abrir o leque de danos reconhecidos. Isso pelo fato de que, ainda que em sua natureza possuam caráter semelhante, isto é, comprometer a vida da vítima de alguma forma, os danos existenciais e biológicos guardam características que os tornam específicos, podendo, dessa forma, serem aplicados distintamente, uma vez que na análise do dano sofrido versus o enquadramento que lhe será dado, o juiz, ponderando os reflexos causados à vítima, poderá considerar que os danos existenciais, considerados mais graves em relação aos danos morais, merecem condenação diversa e própria.

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