O que é testamento vital?

09/04/2021

Segundo definição do Professor Flávio Tartuce[1], o testamento é “um negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou extrapatrimonial, para depois de sua morte”.

Embora o Código Civil de 2002 não tenha conceituado o testamento, a definição apresentada por muitos doutrinadores foi extraída a partir de uma interpretação dos demais dispositivos do Código Civil, entre eles o art. 1.857, §2, que assim estabelece: “§ 2º São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”.

Desse modo, não há dúvidas de que o testamento pode possuir não só conteúdo patrimonial, como também conteúdo extrapatrimonial, incluindo: o reconhecimento de filhos; instituição de fundação com o nome do falecido; determinação da destinação de material genético para reprodução assistida post mortem, também chamado pela doutrina de testamento genético; valores morais, a fim de guiar as condutas dos filhos no futuro, denominado pela doutrina de testamento ético; e manifestações feitas pelo falecido em vida nas redes sociais, no sentido de manter os perfis ou não.

E dentre tantas manifestações testamentárias possíveis, importante destacar o “testamento biológico”, também chamado de “testamento vital”, que é um documento no qual uma pessoa, no pleno gozo de suas faculdades mentais, vai estabelecer como deseja ou não ser cuidada quando, no futuro, for diagnosticada com uma doença grave, terminal, demência ou estiver em estado de coma e vegetativo e não puder manifestar sua vontade.

Nesse caso, a nomenclatura “testamento” não é a mais adequada, uma vez que, em regra, o testamento gera efeitos após a morte, o que não é o caso do testamento biológico ou vital, cujos efeitos serão válidos quando o testador/paciente ainda estiver vivo, mas incapaz de expressar sua vontade.

Embora não haja uma regulamentação específica sobre o testamento vital no Brasil, juridicamente ele é válido, tanto pela disposição do artigo 15 do Código Civil (“Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”) e pela Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que surgiu diante de a necessidade de disciplinar a conduta dos médicos com relação a esses documentos, como pelo reconhecimento da autonomia privada e do princípio da dignidade da pessoa humana.

No ano de 2013, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública em face do CFM visando à suspensão da aplicação da Resolução 1995/2012, sob a alegação de que o conselho de classe teria extravasado o seu poder regulamentar. Entretanto, mencionada ação foi julgada improcedente, com o reconhecimento da constitucionalidade da Resolução 1995/2012 do CFM, que permanece válida no ordenamento jurídico brasileiro, nos termos dos artigos abaixo transcritos:

“Art. 1º. Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

Art. 2º. Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.

§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.

§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.

§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.

§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.

§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.

Art. 3º. Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.”

Outro ponto que merece destaque é o fato de que testamento biológico ou vital e Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) não são sinônimos, como leva a crer a Resolução 1995/2012. Conforme bem pontuado pela Professora Luciana Dadalto, especialista em Direito Médico e da Saúde, as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) correspondem a um gênero do qual o testamento biológico ou vital é considerado uma das espécies.

Em outras palavras, as DAV correspondem a um documento no qual um indivíduo, no pleno gozo de suas faculdades mentais, vai definir como deseja ser cuidado no futuro, caso venha a enfrentar uma situação em que não possa manifestar sua vontade. E quando esse momento futuro for referente à situação de terminalidade, doença incurável, situação irreversível, será o caso de se aplicar a espécie de diretiva chamada testamento biológico ou vital.

A título de curiosidade, atualmente há mais cinco documentos de manifestação de vontade do paciente além do testamento vital no mundo, ainda pouquíssimo utilizados no Brasil. São eles:

1) Procuração para cuidados de saúde , também conhecida como mandato duradouro, no qual o paciente nomeia procurador, podendo ser um ou mais, para tomar decisões em seu nome quando o paciente não puder fazê-lo. Diferencia-se do testamento vital porque não se aplica à situação de fim de vida, podendo ser utilizada em caso de incapacidade temporal;

2) Ordens de Não Reanimação (do inglês, “do not ressuscitate orders”): trata-se de um documento no qual o paciente informa que se o seu coração parar de bater, que o médico o deixe falecer, uma vez que não deseja ser reanimado. É muito comum nos Estados Unidos;

3) Diretivas Antecipadas Psiquiátricas (DAPs): trata-se de manifestação de vontade de paciente que possui doença psiquiátrica e a fim de proteger sua autonomia, deixa predeterminada algumas informações, caso não consiga se expressar em momento específico. Podem existir informações sobre o local onde gostaria de ser internado, quais medicamentos já utilizou e seus respectivos efeitos, se deseja receber visitas etc.;

4) Diretivas Antecipadas para Demência: trata-se de documento recente, criado por médico geriatra americano no fim de 2017, por não concordar em discutir a demência dentro do testamento vital, sob a alegação de que a demência se diferencia de outras doenças crônicas. A ideia é que o paciente elabore um documento antes do diagnóstico, por meio do qual determina como gostaria de ser cuidado caso venha a ser diagnosticado com demência no futuro;

5) Plano de Parto: trata-se de documento no qual a parturiente escreve como ela deseja que o parto de seu filho aconteça. Não será utilizado necessariamente em caso em que estiver impossibilitada de expressar suas vontades, mas para hipótese em que estiver tomada de forte emoção.

Ainda, cabe ressaltar que, no Brasil, o testamento biológico é documento jurídico que produzirá efeitos na relação médico-paciente e não um documento médico, como também faz crer a Resolução do CFM, sobretudo por estar relacionado aos conceitos de bioética, permitindo que o paciente disponha sobre a ortotanásia (morte no tempo certo) e a distanásia (negação da morte, prolongamento da vida, também chamada de “obstinação terapêutica”), com vedação à eutanásia (abreviação da vida do paciente por terceiro), por ser ato ilícito no Brasil.

Quanto ao suicídio assistido, isto é, autoextermínio de portador de doença grave e incurável, auxiliado por terceiro, normalmente profissional de saúde, não há qualquer norma específica no Brasil nesse sentido. A grande diferença entre eutanásia é o agente que irá provocar a morte. Enquanto na eutanásia há um terceiro que pratica o ato que gera a morte do paciente, no suicídio assistido há um terceiro que irá assistir e auxiliar o paciente, a fim de que ele próprio possa cometer o suicídio, muitas vezes através da prescrição médica de dose letal de determinado medicamento.

Apenas a Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha, Suíça e alguns estados dos Estados Unidos que legalizaram o suicídio assistido, sendo a Suíça o único país do mundo que autoriza o suicídio assistido para estrangeiros, motivo pelo qual muitas pessoas ao redor do mundo que desejam pôr fim à vida viajam até a Suíça para tanto.

Assim, no que diz respeito ao gênero Diretivas Antecipadas de Vontade e suas espécies, apesar de o reconhecimento da constitucionalidade da Resolução CFM 1995/2012 pelo Poder Judiciário brasileiro, percebe-se que ainda há bastante confusão acerca do instituto do testamento vital, assim como das demais espécies de DAV, daí porque torna-se de suma importância a criação de projetos de lei e padronização da nomenclatura dos institutos, com o auxílio do biodireito, a fim de afastar qualquer insegurança jurídica e garantir plena eficácia aos institutos.

[1] TARTUCE, Flávio. Direito civil, v.6: direito das sucessões, 10ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2017.

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