Parentalidade Socioafetiva

01/06/2020

O vínculo afetivo passa a ser primordial ao considerar uma entidade familiar.

As rápidas transformações políticas, econômicas e sociais das últimas décadas provocaram significativas mudanças nos fundamentos do laço familiar. Como não poderia deixar de ser, o Direito de Família, vem acompanhando toda essa evolução na busca por tutelar relações e situações antes marginalizadas.

Neste novo contexto social, o parentesco biológico não é mais a única forma admitida em nosso ordenamento. A entidade familiar passa a ter padrões e estruturas variadas baseando-se no fator primordial do chamado vínculo afetivo.

O afeto alcançou natureza de princípio jurídico aplicado no âmbito do direito familiar em razão das profundas alterações na forma de se pensar a família brasileira, possibilitando, por exemplo, o reconhecimento da união homoafetiva, a reparação por danos em decorrência do abandono afetivo e o reconhecimento da parentalidade socioafetiva.

A parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si vínculo biológico ou jurídico, mas vivem como se parentes fossem em decorrência de forte vínculo afetivo.

Para o reconhecimento da parentalidade socioafetiva são necessários o afeto e a posse do estado de filho, que se realiza pela convivência diária fundada no comportamento afetivo entre uma pessoa em relação a outra para a qual se busca o estado de filho, convivência essa pautada pelos cuidados com educação, alimentação, proteção e amor.

Orlando Gomes define a posse de estado de filho como “um conjunto de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo do casal que o cria e educa”1.

No que tange ao direito sucessório, há total equiparação de direitos entre parentes biológicos e parentes socioafetivos. Nesse sentido Flávio Tartuce (2016, p. 203) indica o filho socioafetivo como herdeiro do pai falecido, defendendo a igualdade dos direitos sucessórios entre filhos biológicos e socioafetivos:

[…] se o vínculo baseado na posse de estado de filhos gerar o registro posterior do descendente, o último deve ser reconhecido como herdeiro, com a sua inclusão na vocação hereditária, como se filho biológico do falecido fosse (TARTUCE, 2016, p. 203)”.

Assim, o reconhecimento da parentalidade socioafetiva traz ao filho socioafetivo os mesmos direitos sucessórios dos filhos biológicos, na qualidade de herdeiro legítimo, com base no artigo 1.846 do Código Civil de 2002, que diz:

pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”.

No mesmo sentido se posiciona a jurisprudência:

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. IGUALDADE ENTRE FILHOS. ART. 227, § 6º, DA CF/1988. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VÍNCULO BIOLÓGICO. COEXISTÊNCIA. DESCOBERTA POSTERIOR. EXAME DE DNA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. GARANTIA. REPERCUSSÃO GERAL. STF.

1. No que se refere ao Direito de Família, a Carta Constitucional de 1988 inovou ao permitir a igualdade de filiação, afastando a odiosa distinção até então existente entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos (art. 227, § 6º, da Constituição Federal).

2. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos.

3. A existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis.

4. O reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros.

5. Diversas responsabilidades, de ordem moral ou patrimonial, são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação.

6. Recurso especial provido.” (STJ – REsp: 1618230 RS 2016/0204124-4, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 28/03/2017, T3 –TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2017)

Em sede de repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal firmou a tese de que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

Neste sentido é a recente jurisprudência:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO/DECLARAÇÃO JUDICIAL DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA COM INCLUSÃO EM REGISTRO CIVIL. DUPLA PATERNIDADE. POSSIBILIDADE.

1. Com base no leading case do Supremo Tribunal Federal (RE 898060, Tema 622), o qual firmou a tese de que “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”, impõe-se reconhecer a paternidade socioafetiva, concomitante com a biológica, em favor do filho, cuja convivência existente com aquele é reconhecida entre eles e socialmente.

2. Reformada a sentença de improcedência, para julgar procedente o pleito inicial e reconhecer a dupla paternidade no registro civil do autor/apelante, para os fins legais, patrimoniais e extrapatrimoniais. APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA.” (TJ-GO - 00594007920178090051, Relator: MARCUS DA COSTA FERREIRA, julgado em: 05/11/2019, 5ª Câmara Cível).

Além das consequências sucessórias, o vínculo parental possibilita a inclusão do sobrenome da família socioafetiva, bem como garante ao filho socioafetivo direitos a alimentos e eventuais benefícios que os pais socioafetivos possuam, tais como plano de saúde e algum outro benefício social.

O reconhecimento da parentalidade socioafetiva pode se dar de forma extrajudicial, desde que presentes os requisitos especificados abaixo, ou pela via judicial, para as hipóteses em que ausentes tais requisitos.

- Exclusivamente para filhos acima de 12 anos, que deverão consentir;

- Reconhecimento exclusivamente unilateral (somente um pai ou uma mãe socioafetiva);

- Necessidade de apresentação de prova do vínculo afetivo;

- Consentimento do pai/mãe biológicos;

- Atestado do registrador sobre a existência da afetividade;

- Parecer favorável do Ministério Público, que equivalerá ao deferimento.

A evolução do Direito de Família é revelada com a positivação e regulamentação de fenômenos que sempre existiram na sociedade, e a parentalidade socioafetiva é um deles. A evidência que essa realidade sempre esteve presente em nossa sociedade se demonstra com o número considerável de decisões judiciais que estão acolhendo a socioafetividade e reconhecendo a possibilidade de registros públicos de vínculos de filiação de origem afetiva e biológica. Parentesco biológico e afetivo encontram a mesma dignidade constitucional, garantindo o reconhecimento dos laços de amor entre envolvidos.

Marina Gemperli Mari

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