TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA: quem deve responder pelos danos?

16/06/2020

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A teoria da causalidade adequada foi desenvolvida para analisar qual ação ou omissão exata e efetivamente foi a causadora de um dano, de modo a definir e distribuir as responsabilidades pela reparação e indenização.

No Direito Penal essa teoria é de peculiar importância para aferir quem é o agente do crime. Imagine a seguinte situação para ilustrar bem a importância dessa teoria: um homem diabético possui alguns inimigos próximos e um deles adiciona açúcar aos alimentos que esse homem vai ingerir, sem que ele perceba, em quantidade suficiente para levá-lo a óbito.

Agora imagine que algumas horas após o consumo da elevada dose de açúcar, outro desafeto desse homem dispare arma de fogo contra ele, cujo projétil perfura seu abdômen. Pouco tempo depois de ambos os fatos, o homem falece.

Em um primeiro momento, considera-se que o disparo com arma de fogo tenha causado a morte, mas na autópsia descobre-se que a causa da morte foi envenenamento por açúcar e que o projétil não atingiu qualquer órgão vital, sendo que os ferimentos poderiam ter sido plenamente tratados sem maiores consequências.

Nesta hipótese extrema, muito embora as ações dos dois desafetos pudessem ter causado a morte, apenas uma delas foi decisiva: a adição de quantidades elevadas de açúcar no alimento de um homem diabético. Então, apenas a pessoa que ministrou o açúcar responderá pelo homicídio do homem hipotético, enquanto a outra pessoa responderá pela tentativa de homicídio.

No Direito Civil essa teoria é igualmente aplicada para averiguar de que forma a atividade ou a omissão de alguém contribuiu para a ocorrência do dano que enseja a investigação da responsabilidade, que possui como pressupostos básicos:

(1) existência do dano;

(2) ação ou omissão que tenha causado o dano; e

(3) o nexo causal (a ligação) entre a ação e omissão e o dano.

A teoria da causalidade adequada se revela importante na análise do nexo causal. Isto é, em que medida a ação ou omissão da pessoa entendida como responsável verdadeiramente causou o dano? Apurada essa ligação, passa-se a verificar como o causador deve ressarcir a vítima.

Nos Tribunais é muito comum averiguar a extensão da responsabilidade a partir da teoria da causalidade.

Compensação de cheque furtado

Em um caso específico, entendeu-se pela ausência de responsabilidade de instituição financeira que compensou um cheque furtado. A decisão considerou que não havia como atribuir à instituição financeira qualquer responsabilidade pelos prejuízos suportados pela autora da ação, que teve o cheque furtado, porque a atuação da instituição financeira não havia sido determinante para os prejuízos da autora, consistentes em compensação de cheque no valor de R$ 6.974,42, que foi furtado por terceiro no estabelecimento da autora[1].

Atividade de mineradora

Em outra situação, o Tribunal de Justiça de São Paulo avaliou se as explosões que determinada mineradora promoveu em sua atividade de extração de pedras teriam ocasionado danos ao imóvel do autor da ação. O laudo técnico de engenharia concluiu que as explosões haviam ocorrido mais de 700 metros distante do imóvel do autor, demonstrando que os danos alegados não poderiam ter sido causados pela atividade da mineradora. Reconheceu-se, então, que “a explosão executada pela ré não era, por si só, capaz de causar os danos ao imóvel do autor, o que afasta a obrigação de indenizar”[2].

Falecimento de consumidor

Diante de outro caso foi necessário apurar a responsabilidade de um estabelecimento comercial pela morte de um consumidor ao escorregar nas suas dependências. Nesta hipótese, o Tribunal entendeu que a morte do consumidor não teve origem em qualquer ato ou omissão dos responsáveis pelo estabelecimento comercial, afastando assim a pretendida responsabilidade[3].

Acidente com jet ski

O Tribunal de Justiça de São Paulo também avaliou a responsabilidade de um proprietário de jet ski que autorizou terceiro não habilitado a conduzir o veículo aquático. A ausência de expertise do condutor levou a acidente em que foi atingido um barco de propriedade do dono do próprio jet ski, ocasionando lesões àquele condutor inábil.

O motorista causador do acidente sustentou em juízo que o proprietário do jet ski estava ciente de que ele não possuía habilitação técnica para conduzir o veículo e que haveria, portanto, culpa concorrente entre eles, de forma que o proprietário deveria responder pelos danos físicos por ele sofridos.

Diante dessa controvérsia, o Tribunal de Justiça entendeu não se tratar de culpa concorrente entre as partes, mas sim de culpa exclusiva do condutor, deixando claro que “a tão só entrega do veículo a pessoa inabilitada, sem outras considerações, não revela nexo de causalidade adequada para com a eclosão do evento”[4].

Contaminação da esposa com doença venérea

Também houve discussão acerca da responsabilidade do marido pela contaminação de sua esposa com doença sexualmente transmissível. Apurou-se judicialmente que a esposa não possuía conhecimento do comportamento sexual extraconjugal do marido, tampouco de suas escolhas quando à utilização de drogas ilícitas injetáveis em grupo.

O Superior Tribunal de Justiça entendeu que “há responsabilidade civil do requerido, seja por ter ele confirmado ser o transmissor (já tinha ciência de sua condição), seja por ter assumido o risco com o seu comportamento, estando patente a violação a direito da personalidade da autora (lesão de sua honra, de sua intimidade e, sobretudo, de sua integridade moral e física), a ensejar reparação pelos danos morais sofridos”[5].

Como se nota, a teoria da causalidade adequada é amplamente utilizada pelos Tribunais para esclarecer demandas processuais de natureza civil e revela que a responsabilidade está diretamente ligada à atuação de determinado agente para a ocorrência do resultado.

Tendo isso em mente, é importante estabelecer critérios de operação e parâmetros de conduta para reduzir ao máximo as possibilidades de responsabilização que podem advir do funcionamento comercial normal e até mesmo nos aspectos mais comuns do nosso cotidiano. Pois, como vimos, respondendo à pergunta inicial, deve responder por eventuais danos as pessoas que lhes deram causa, podendo ser pessoa física ou jurídica, desde que o dano verificado seja diretamente decorrente da sua atividade.

Teoria da causalidade e a COVID-19

Diante do cenário pandêmico atual, muito difícil não refletir sobre como a COVID-19 impactará nosso futuro breve em diversas áreas da vida. E como se demonstrará, a teoria da causalidade adequada terá importância fundamental para solucionar as questões relativas às negociações que se disserem prejudicadas pela ocorrência abrupta da pandemia.

Diariamente nos é proposta alguma forma de reflexão sobre como as relações comerciais e/ou contratuais em geral (incluindo relações trabalhistas e de consumo) são afetadas pela necessária reclusão para enfrentamento eficaz da COVID-19.

É muito claro que a adoção do isolamento social impacta variados setores de serviço e da indústria em seus diversos aspectos: fornecimento e distribuição de bens, redução de consumidores, possibilidade de funcionários contraírem a COVID-19 por ocasião do trabalho etc.

Por isso muito se tem falado acerca da necessidade de adoção de práticas colaborativas para solução dessas contendas de forma que nenhuma das partes seja excessivamente onerada nesse período. Contudo, será de primeira importância avaliar o quanto a COVID-19 efetivamente prejudicou determinado setor para avaliar o quanto as obrigações contraídas podem ou devem ser flexibilizadas.

Por exemplo, muito se noticiou em meados de março que mercados e supermercados de diversos portes apontaram a procura acima do normal por papel higiênico, o que causou o esgotamento do produto em diversos deles. Sabendo disso, será possível afirmar que a COVID-19 afetou negativamente esse nicho de consumo?

Ou talvez o caso de uma indústria de produção de álcool etílico hidratado (álcool para limpeza geral doméstica) que também viu seus produtos esgotados. Será que esses seguimentos fazem jus ao recebimento de benefícios como isenção tributária ou redução de aluguel simplesmente porque muitas dessas medidas têm sido concedidas a outros ramos comerciais?

Pela teoria da causalidade adequada já vimos que não - não se pode afirmar que o fato de existir uma pandemia é suficiente para concluir que todas as empresas, fornecedores, consumidores, podem evocá-la para justificar alguma espécie de benefício. Deve ser demonstrado especificamente como o setor sofreu com a COVID-19, isto é, que a COVID-19 foi essencial para a causalidade dos prejuízos alegados.

É possível, e até provável, que diversos ramos do comércio e da indústria sofra alguma redução nesse período por motivos diversos e anteriores à pandemia, como mau gerenciamento de anos, agonização de determinado modelo de consumo, crise política anterior à COVID-19, entre outros. Talvez a COVID-19 seja o ‘tiro de misericórdia’, mas não necessariamente a causa primordial que ensejou o estado de crise financeira do setor e/ou ramo.

Claro que as suposições ora referidas consideram cenários hipotéticos e soluções relativamente fáceis. No dia-a-dia das relações contratuais muito se discutirá não só sobre a teoria da causalidade adequada, como também a teoria da imprevisão, a teoria da exclusão de responsabilidade pela força maior e a teoria da revisão judicial. Mas isso tudo será assunto de outro debate.

[1] TJSP; Apelação Cível 0201625-62.2012.8.26.0100; Relator (a): Maria Cláudia Bedotti; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VI - Penha de França - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/09/2015; Data de Registro: 25/09/2015.

[2] TJSP; Apelação Cível 0180622-56.2009.8.26.0100; Relator (a): Carlos Alberto Garbi; Órgão Julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 18ª Vara Cível; Data do Julgamento: 10/08/2011; Data de Registro: 11/08/2011.

[3] TJSP; Embargos Infringentes 9210430-69.2003.8.26.0000; Relator (a): Beretta da Silveira; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bauru - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: N/A; Data de Registro: 10/05/2007.

[4] TJSP; Apelação Cível 9234299-85.2008.8.26.0000; Relator (a): Airton Pinheiro de Castro; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sorocaba - 5ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 05/02/2013; Data de Registro: 05/02/2013.

[5] STJ, 4ª Turma, REsp 1.760.943-MG, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 19/03/2019 (info 647).

Fani Lima

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